segunda-feira, 16 set 2019
Os inimigos do livre mercado frequentemente fazem
dois ataques: primeiro, eles dizem que tal arranjo é o favorito dos grandes
empresários; em seguida, dizem que os defensores do livre mercado trabalham a
soldo deste grande empresariado, defendendo seus interesses.
De maneira caracteristicamente conspiratória, eles
se apressam em descrever o libertarianismo — a filosofia que defende o livre
mercado — como sendo um conjunto de teses criadas ad hoc para
beneficiar a plutocracia: impostos baixos ou nulos, ausência de leis
trabalhistas, ausência de regulamentações sobre a economia, oposição à
tributação, oposição às leis antitruste etc.
O curioso, no entanto, é que se todas as propostas
defendidas pelos adeptos do livre mercado de fato fossem colocadas em prática,
os grandes empresários seriam exatamente os mais afetados e prejudicados por
elas.
E isso é puramente lógico.
Para começar, a acusação de que o livre mercado
defende os interesses dos grandes empresários imediatamente se depara com um
problema insolúvel: os interesses dos empresários não são nada
homogêneos.
Por exemplo, dentro de uma mesma área da economia,
duas empresas podem competir e batalhar ferozmente até que uma delas desapareça
(pense em duas empresas de telefonia celular, duas companhias aéreas ou de
sistemas operacionais).
Dentro de um mesmo sistema econômico, diferentes indústrias
podem reproduzir esta feroz concorrência para ganhar os clientes das outras
(por exemplo, empresários que fabricam computadores versus empresários que
fabricam máquinas de escrever).
Mais ainda: dentro da economia global, os interesses
gerais de alguns capitalistas podem estar em conflito com os interesses de
outros capitalistas (por exemplo, quando alguns especuladores atacam as ações
de uma empresa é evidente que os interesses dos especuladores são absolutamente
contrários aos interesses da empresa contra a qual eles estão especulando).
Se os adeptos do livre mercado realmente querem
defender os interesses de empresários e capitalistas, então eles
inevitavelmente entrarão em colapso em decorrência de um curto-circuito
esquizofrênico. Afinal, exatamente os interesses de quais empresários ou
capitalistas eles irão defender a cada momento?
Com efeito, dado que não há a mais mínima garantia
de que todos os empresários serão beneficiados em um sistema de livre concorrência,
a lógica diz que a maioria deles não terá motivos para
defender os princípios do livre mercado. E a realidade é que o livre
mercado beneficia apenas aqueles empresários competentes, aqueles capazes de
investir adequadamente seu capital de modo a satisfazer — melhor do que seus
concorrentes — as variadas e variáveis demandas dos consumidores. E de
satisfazer continuamente estas demandas.
O livre mercado, portanto, é um arranjo bastante
incerto, hostil e variável, no qual poucos empresários podem se sentir
permanentemente confortáveis.
O que a grande maioria dos empresários realmente
deseja é que o estado lhes proteja da concorrência e lhes assegure uma fatia
garantida de lucro, que lhes permita desfrutar a vida sem dores de cabeça e sem
constantes preocupações acerca de como melhorar seus serviços aos
consumidores.
O que os empresários realmente desejam são subsídios (ou empréstimos subsidiados
com os impostos da população) que lhes deem vantagem de mercado, tarifas protecionistas que
os protejam da concorrência de importados e agências reguladoras que
cartelizem o mercado e dificultem a entrada de novos concorrentes.
Mesmo uma carga tributária alta ou um código
tributário confuso e complexo podem ser do interesse dos grandes empresários:
ambos não apenas impedem que novas empresas surjam e cresçam, como ainda
representam um grande custo para as pequenas empresas já existentes. Ao passo
que as grandes empresas, recheadas de contadores e tributaristas, conseguem
navegar com facilidade pelos labirintos do emaranhado tributário, as pequenas
empresas, que têm uma folha de pagamento menor e não podem se dar ao luxo de
contratar contadores experientes e caros, mal sobrevivem a isto. Seguidas vezes
cairão na "malha fina" da Receita e serão chamadas de
"sonegadoras criminosas"
Se os libertários estivessem a serviço do
empresariado, suas principais reivindicações consistiriam em exigir que o
estado criasse mais regulações, mais tarifas, mais subsídios e aumentasse seus
gastos de forma a maximizar
o lucro empresarial. (Exatamente como querem os intervencionistas).
No entanto, o que ocorre é justamente o oposto: os
libertários desejam abolir todas as
regulações, todos os subsídios, todas as tarifas e todos os gastos estatais que
resultam em altos lucros para determinada casta corporativa.
Fazendo uma lista nada exaustiva, os genuínos
defensores do livre mercado se opõem às seguintes prebendas tão ao gosto de
vários empresários acomodados:
1) Políticas de preços mínimos,
subsídios e pacotes de socorro
Em um livre mercado, todas as empresas devem estar
sujeitas aos desejos dos consumidores. Isso implica que nenhum empresário
ou capitalista tem sua renda futura garantida. Suas rendas decorrerão
exclusivamente de suas capacidades de atender os desejos dos consumidores de
forma mais satisfatória que seus concorrentes.
Este princípio, é claro, não vale apenas para
empresários e capitalistas, mas também para todos os agentes econômicos (daí a
tão difundida ideia de que somos "escravos do mercado").
Consequentemente, os libertários se opõem a todos os
tipos de falcatruas estatistas criadas com o intuito de burlar esta servidão
dos empresários aos consumidores.
Exemplos típicos destas falcatruas são as políticas
de preços mínimos (o estado compra as mercadorias de um empresário a preços
mais altos do que estão dispostos a pagar os consumidores), os subsídios (os pagadores
de impostos são obrigados a financiar um projeto empresarial com o qual não
necessariamente concordam), e os pacotes de socorro (empresas falidas, que destruíram mais
riqueza do que foram capazes de criar, e que, de acordo com os desejos
claramente manifestados pelos consumidores — que não mais compram seus
produtos —, deveriam desaparecer, são salvas pelo governo).
Empresários gostam de políticas de preços mínimos,
de subsídios e de pacotes de socorro. Os libertários são radicalmente
contra todas elas.
2) Barreiras de entrada ao mercado
Se o empresário deve, a todo o momento, servir ao
consumidor de forma mais satisfatória que seus concorrentes, então é evidente
que sua situação dentro da economia de mercado está continuamente em
perigo. Mesmo que ele não esteja visualizando nenhuma ameaça ao seu
domínio, isso não significa que ninguém esteja preparando um plano de negócios
que a curto, médio ou longo prazo termine por destroná-lo.
Exatamente por isso, os empresários que já estão
estabelecidos no mercado adoram todos os tipos de barreiras de entrada que
impeçam que outros empresários com novas ideias os desbanquem. Os
libertários, por sua vez, se opõem a toda e qualquer regulamentação que
bloqueie a livre concorrência, exatamente porque é a livre concorrência que
permite desbancar empresários menos eficientes.
Licenças, burocracia, regulamentações que
imponham opressivos custos iniciais, concessões exclusivas e monopolistas, e até
mesmo patentes —
tudo isso é combatido pelos libertários.
Empresários já estabelecidos no mercado adoram
restrições à concorrência. Os libertários as detestam.
3) Tarifas de importação, desvalorização
cambial e outras barreiras protecionistas
Outra forma de proteção contra a concorrência são as
tarifas de importação, as quotas e outras barreiras protecionistas, como a
desvalorização cambial. Este ferramental mercantilista blinda as empresas
nacionais contra a concorrência estrangeira, assegurando aos empresários que se
especializaram em atender o mercado interno a continuidade de seu
reinado.
Dado o tamanho da economia mundial em relação a uma
economia nacional qualquer, basta apenas imaginar a enorme inquietação que
sente um empresário nacional quando, de repente, as barreiras comerciais são
abolidas e ele se depara com toda uma cornucópia de potenciais
concorrentes estrangeiros. Daí que inúmeros empresários adoram o protecionismo comercial e
o câmbio
desvalorizado, ao passo que os libertários sempre foram marcadamente
pró-livre comércio e pró-moeda forte.
Novamente, empresários e defensores do livre mercado
estão em lados completamente opostos.
4) Crédito artificialmente barato
Capitalistas e empresários têm, e sempre tiveram,
uma relação passional com o crédito barato. Muitos empresários vendem a
maior parte de suas mercadorias a crédito (imóveis, eletrodomésticos,
automóveis etc.), de modo que, quanto mais crédito, mais vendas.
Da mesma maneira, para montar uma empresa, ou para
multiplicar seus rendimentos, é necessário capital, e uma forma de obter esse
capital de maneira acessível é com empréstimos bancários artificialmente
baratos.
Por sua vez, os empresários provedores deste crédito
artificialmente barato e abundante — os banqueiros — também obtêm lucros
extraordinários em decorrência de seu agora maior volume de negócios.
Sendo assim, quase todos os empresários adoram
quando o governo, por meio de seu Banco Central, fornece mais dinheiro aos
bancos para que estes expandam o crédito a custos mais baixos. E adoram
ainda mais quando o próprio governo, por meio de algum banco
estatal de fomento, fornece este crédito.
Os liberais, ao contrário, condenam as manipulações
inflacionistas do crédito e, para acabar com elas, chegam até mesmo a
propor o abandono da moeda fiduciária e a abolição destes monopólios estatais
chamados Bancos Centrais, que tanto protegem e beneficiam o sistema
bancário.
Outro ponto no qual empresários e defensores do
livre mercado batem de frente.
5) Planos de estímulos e obras públicas
Uma possível consequência das expansões creditícias
é o endividamento estatal decorrente de projetos faraônicos
despropositados, como obras públicas megalomaníacas. Muitas destas
obras são inventadas com o intuito de gerar empregos e "estimular" a
economia.
Mas há também as "obras corriqueiras",
como construção de rodovias, portos, aeroportos, refinarias estatais etc., as
quais são tocadas por empreiteiras cujos donos possuem laços
estreitos com políticos e que, por isso, são selecionadas de acordo com
este critério.
As empresas adoram tais obras porque elas
incrementam suas receitas e seus lucros.
Quando uma empresa privada faz um contrato com o
governo para executar uma obra, ela passa a usufruir uma renda garantida por
meio do dinheiro de impostos que o governo lhe repassa. Tal arranjo é a exata
antítese do livre mercado.
Se uma empresa é escolhida segundo critérios
políticos, se a sua renda é garantida pelo estado, e se não há consumidores
para cobrar qualidade, o arranjo é o exato oposto daquele defendido pelos
libertários.
[É por isso que empreiteiras são um grande exemplo
de empresas privadas que, na prática, funcionam como se fossem estatais. A
esmagadora maioria de suas receitas advém de obras que elas executam para
governos (federal, estaduais e municipais), sendo pagas com o dinheiro de
impostos. Segundo os relatos do Ministério Público, por exemplo, quase 100%
do faturamento da empreiteira Delta, do empresário Fernando Cavendish, vinha
de contratos públicos, chegando a quase R$ 11 bilhões. A maioria dos recursos
veio de contratos com o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte
(Dnit).]
Com efeito, tais obras públicas nada mais são do que
uma forma de subsídio e, como todos os subsídios, elas são repudiadas
frontalmente pelos libertários.
Outro exemplo em que não há nenhuma coincidência de
opiniões entre livre-mercadistas e empresários.
Conclusão
O fato de os libertários defenderem um arranjo no
qual os melhores empresários podem prosperar e enriquecer não significa que
estejam a serviço destes, uma vez que, em tal arranjo, os empresários que forem
ineficientes — e que não podem recorrer aos privilégios e protecionismos
estatais — estão condenados ao fracasso.
Mais ainda: nada impede que os empresários bem
sucedidos de hoje se transformem nos arruinados de amanhã.
Os libertários defendem este arranjo porque ele é o
único que permite que todos satisfaçam suas necessidades: os melhores
empresários enriquecem somente após terem gerado muito valor
para os consumidores.
A realidade, portanto, é exatamente o oposto do que
parece: são os intervencionistas, contrários ao livre mercado, que recorrem a
todos os tipos de argúcias estatistas para solapar a soberania do consumidor e,
consciente ou inconscientemente, encher os bolsos dos empresários protegidos
pelo governo.
Já passou da hora de as pessoas entenderem a
diferença entre livre mercado — que se baseia na liberdade e na concorrência —
e mercantilismo, que se baseia em privilégios concedidos pelo estado.
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Leia
também:
No capitalismo de livre
mercado, quem sempre ganha é o consumidor
O capitalismo de estado,
ou "rent seeking", é o comportamento que explica a economia do Brasil
Na verdade, é a esquerda
progressista quem acredita que o mercado é perfeito e imune a falhas
Empresas grandes,
ineficientes e anti-éticas só prosperam em mercados protegidos e regulados