segunda-feira, 24 ago 2009
Quando confrontado com um esboço
de como uma sociedade verdadeiramente voluntária poderia funcionar, com
empresas privadas ofertando serviços judiciais e de defesa, junto com educação
e Big Macs, o crítico frequentemente contesta: "Tal arranjo nunca duraria no
mundo real! O crime organizado
inevitavelmente iria assumir o comando, tornando-se o novo governo!"
Trata-se de uma argumentação típica que, na realidade, está invertendo as
coisas. Contrariamente à crença popular,
o governo não obstrui o surgimento do
crime organizado; ele fomenta.
Pare por um momento e pense naqueles setores da economia tipicamente
ocupados pelo crime organizado: prostituição, jogos, agiotagem, narcóticos e
sindicatos. O que todos esses setores
têm em comum? Simples. Ou eles são fortemente regulados pelo estado,
ou são pura e simplesmente proibidos por ele.
Em contraste, nos setores que estão relativamente livres da
interferência governamental, o crime organizado não se estabelece.
A experiência clássica que comprova a validade dessa explicação é a Lei Seca
que vigorou nos EUA no período 1919-1933.
Durante essa época, a produção, o transporte e a venda de bebidas
alcoólicas eram ilegais. O que
aconteceu? Gangsteres como Al Capone
entraram em cena e passaram a controlar o comércio ilegal, aniquilando seus
concorrentes nas inevitáveis e infindáveis disputas territoriais. Entretanto, assim que a Lei Seca foi revogada
(em uma das poucas coisas decentes que Franklin Roosevelt fez em toda a sua
presidência), o crime organizado abandonou a indústria do álcool e se voltou
para os outros setores que continuavam proibidos.
Agora, se a análise acima está correta, e o crime organizado (e gangues
violentas em geral) prospera apenas naquelas áreas infestadas de intervenção
estatal, então parece óbvio que uma anarquia de mercado iria emascular
esses grupos criminosos. Colocando em
outras palavras, à medida que o governo legalizasse mais e mais setores, o
crime organizado teria de concentrar suas atividades em negócios cada vez mais
restritos. No limite, se tudo fosse
legalizado (do ponto de vista de legislação estatal), o crime organizado não
teria como obter nenhuma vantagem especial.
Da mesma forma que a máfia não aguenta concorrer diretamente com uma
fabricante de cervejas como a Budweiser, ela também perderia sua fatia de
mercado para empreendedores honestos dos setores judiciário e policial caso o
estado cancelasse seu monopólio sobre esses serviços.
Uma
Explicação Rival para o Episódio da Lei Seca
Alguns críticos mais sagazes apresentaram uma interpretação rival para a
minha teoria acima. Eles argumentam que
eu errei ao interpretar a revogação da Lei Seca como sendo uma redução da intervenção estatal na
indústria de bebidas alcoólicas. Segundo
eles, o que ocorreu foi o oposto: ao revogar a Lei Seca, o estado na verdade retomou sua função de protetor da
propriedade, protegendo dessa forma os produtores de álcool.
Devo confessar que essa explicação alternativa me pegou de surpresa; pensava
que meu exemplo da Lei Seca acima era incontestável, mas meus críticos ao menos
ofereceram uma réplica plausível. Entretanto,
no cômputo geral, ainda creio que minha interpretação é bem superior. Esse, todavia, é um ponto crucial; sendo
assim, permita-me elaborá-lo melhor.
Quando digo que o crime organizado se beneficiou com a Lei Seca, é porque a
polícia efetivamente perseguia e afugentava os legítimos empresários da
indústria de bebidas alcoólicas. Se o
estado literalmente declarasse que Al Capone tinha o monopólio da distribuição
de bebidas em Chicago, e mandasse qualquer concorrente pra cadeia, então o
preço das bebidas em Chicago iria disparar, e Capone obteria lucros
exorbitantes em decorrência disso. Isso
é algo óbvio. De maneira similar, estou
argumentando que, quando o estado ameaça colocar na cadeia todos os distribuidores de bebidas - mas faz vista grossa para Capone, que paga
suas propinas em dia -, isso é economicamente similar a um monopólio garantido
pelo estado.
Estou utilizando Capone apenas para fazer um argumento ilustrativo. Não fiz nenhuma pesquisa específica sobre
ele, mas é certo que hoje em dia as grandes organizações criminosas pagam
regularmente sua propina à polícia - cujo termo técnico é "taxa de
proteção". Se o leitor duvida disso,
então é porque ele de fato não entende o essencial do comércio de drogas. Para uma introdução básica, assista a Serpico, um ótimo filme com Al Pacino
baseado na história verídica de um policial do departamento de narcóticos da
polícia de Nova York que se recusava a aceitar dinheiro sujo. (Pensando bem, você pode assistir a
praticamente qualquer filme de Al Pacino para aprender que os grandes barões do
tráfico rotineiramente subornam a polícia).
Os
Custos e Benefícios Marginais da Violência nos Mercados
Empiricamente, já deveria estar mais do que óbvio que a violência anda de
mãos dadas com os mercados que sofrem de ampla proibição estatal. Novamente, o experimento clássico é a Lei
Seca. Seria inconcebível imaginar os
executivos da Budweiser ordenando um massacre - naquele estilo em que carros
passam metralhando a fachada de um estabelecimento - dos seus rivais da
Heineken. Entretanto, quando o estado
erradicou grande parte dos produtores dessa indústria, os massacres se tornaram
comuns. Essa constatação ajuda a entender algo maior: as
disputas territoriais de gangues rivais que ocorrem atualmente nas grandes
cidades são decorrência da proibição das drogas. Essas disputas não ocorrem, como pensam alguns, porque o comércio de
cocaína seja algo intrinsecamente "louco" ou "insensato".
Mas ainda que a maioria dos libertários reconheça a associação entre
violência e proibição estatal, suas causas raramente são explicadas. Bem resumidamente, a explicação é simples: a
proibição estatal a qualquer tipo de comércio eleva os benefícios marginais e
diminui os custos marginais de se utilizar de violência contra os concorrentes
do setor econômico em questão.
Comecemos com os custos, que são mais fáceis de entender. Nesse exato momento, se você se tornar um
distribuidor de cocaína, você estará infringindo leis que podem mandar-lhe para
a cadeia por um bom período de tempo. Entretanto,
se você for poderoso o suficiente, você pode dar sacos e mais sacos de dinheiro
para a polícia local. Dessa forma, na margem, o custo de você matar um
traficante rival é bem menor do que seria se você gerisse um restaurante
tailandês e matasse seu concorrente japonês.
Por quê?
Quando você é um dono de restaurante qualquer, o pior que o governo pode
fazer com você é auditar sua declaração de renda. Porém, se você for um traficante de cocaína e
descuidar da propina, isso pode lhe custar a simpatia dos policiais. Resultado: você pode ir em cana.
Assim sendo, se você é um traficante e tiver condições
de pagar religiosamente a propina da polícia, matar alguém deixa de ser uma
medida temerária. Por outro lado, se
você for um dono de restaurante, ordenar a morte do sujeito que está abrindo
uma casa de sushi na sua rua seria algo insano.
O traficante tem tiras corruptos na sua folha de pagamento, os quais
presumivelmente estariam dispostos a fazer vista grossa a um homicídio caso
recebessem uma grana extra. Além disso,
é bem provável que o traficante também tenha conexões ainda mais importantes,
não sendo desarrazoado imaginar que ele possa também subornar juízes caso algum
dia ele tenha de ir a julgamento.
Já os benefícios marginais da
violência são muito maiores para o traficante de cocaína do que para o dono do
restaurante tailandês. Traficantes de
drogas não são (completamente) imprudentes; eles operam pelo dinheiro. Para compensar o alto risco, os retornos
monetários do comércio de cocaína têm de ser astronômicos. (Se você gosta de gráficos, quando o governo
ameaça prender os vendedores de cocaína, a curva da oferta se desloca acentuadamente
para a esquerda, ao passo que a curva da demanda também se desloca para
esquerda, só que muito pouco. Assim, o
preço de equilíbrio do quilo da cocaína dispara, indo para um nível muito acima
do seu custo monetário de produção).
Por causa das considerações acima, o benefício de se ganhar uma fatia de
mercado no comércio de cocaína é enorme.
Cada novo cliente pode significar um lucro extra de milhares de dólares
por mês. Em enorme contraste, se o dono
do restaurante tailandês "roubar" um cliente do restaurante japonês, isso pode gerar-lhe
um acréscimo de meros $100 por mês, pois a margem de lucro na indústria de restaurantes é muito menor que no tráfico de drogas. Para os traficantes, pode fazer sentido ficar
rondando portas de escola, vendendo seus produtos para adolescentes, ou até
mesmo dando amostras grátis para novatos (embora eu não saiba se isso de fato
ocorre; estou baseando-me nas propagandas antidrogas). Por outro lado, você nunca vê representantes da Kellogg's vendendo caixas avulsas de
Sucrilhos para as crianças. Por causa
dessa enorme diferença, conquistar novos clientes é algo muito mais valioso para
quem opera nas indústrias proibidas do que para quem opera no setor livre. É por isso que matar um rival - e com isso
ganhar acesso a seus clientes - é muito mais lucrativo nos setores proibidos.
Portanto, quando o estado ameaça prender os produtores de um determinado
bem, ele acaba alterando os incentivos de mercado, de modo que a violência passa a ser
muito mais lucrativa para essa indústria.
Naturalmente, no mundo real, as pessoas não são computadores que calculam
robotizadamente suas funções de utilidade - ao contrário do que pensam os
economistas neoclássicos. Assim, não
estou dizendo que o mesmo empreendedor vai
agir de maneiras distintas, dependendo da política de combate às drogas. Não estou dizendo que esse empreendedor irá
escolher entre ser um homem reto ou um assassino perverso, tudo dependendo
apenas do nível de repreensão ao tráfico.
Não. O que ocorre é que aquelas
pessoas que têm predisposição para ser assassinas cruéis ganham um incentivo
adicional com a política de ilegalidade de certos mercados, o que permite que
elas prosperem e se tornem muito ricas em uma sociedade cujas leis antidrogas
são rigorosas.
Logo, ao invés de ser apenas mais um sociopata - do tipo que mata um sujeito
que olhou lascivamente para sua namorada num bar e que, por isso, vai para a cadeia -, as asininas leis
antidrogas acabam por fazer com que esse sociopata possa ganhar milhões por ano
vendendo cocaína - sendo que com esse dinheiro ele agora poderá comprar armas automáticas, contratar
capangas, subornar policiais e se tornar o rei das ruas.
O
Estado Realmente Protege a Propriedade Privada?
O que é realmente irônico na teoria apresentada pelos meus críticos é que
ela assume que o governo é de fato bom em proteger os direitos de
propriedade. Em outras palavras, a
teoria deles assume que o pessoal honesto da Budweiser não conseguiria competir
com Al Capone em 1930 porque este ameaçaria matá-los - e o pessoal da Bud não
poderia reclamar com a polícia porque, afinal de contas, esse era um mercado
ilegal. Porém, tão logo a Lei Seca fosse
revogada, eles alegam que os produtores legítimos de bebidas alcoólicas
poderiam repentinamente processar os gangsteres que destruíram seus estoques e
mataram seus empregados.
Concedo que possa haver um grão de verdade nesse raciocínio, mas enfatizo que é
apenas um grão. Sabemos que o governo
tem um desempenho horrível em todos os empreendimentos que executa, sejam eles
educação, pavimentação de estradas, fornecimento de eletricidade e serviços de
inteligência. Considerando-se esse
histórico, deveríamos acreditar que o governo é realmente bom em proteger as
pessoas contra criminosos? Se isso é
verdade, então por que as pessoas cada vez mais recorrem aos tribunais de
arbitramento privados? Não é óbvio que
os tribunais e a polícia estatais são tão ineficientes e contraproducentes
quanto todas as outras atividades que o estado se arvora fazer?
Para realmente testarmos as diferentes teorias, precisamos pensar em uma
atividade em que o governo (a) não crie empecilhos para os produtores, mas que
também (b) não defenda os direitos de propriedade desses mesmos produtores. Se essas áreas forem repletas de roubo e
violência, então meus críticos estão certos.
Mas se esses setores forem geralmente ordeiros e pacíficos, então sou eu
quem está certo.
Posso pensar em alguns exemplos em que eu estou certo. Por exemplo, o comércio pela internet é bem
pouco regulado. Claro, se você comprou
um livro de uma pessoa através da Amazon, e o cara não lhe enviou o produto,
você pode levá-lo a um tribunal de pequenas causas. Mas não é isso o que faz o sistema
funcionar. O sistema funciona porque se
baseia claramente nos efeitos que uma boa reputação traz para um vendedor, e
não porque haja uma ameaça de ações judiciais governamentais.
Outros exemplos são o do Velho Oeste (que estava longe de ser
selvagem), onde os exploradores da Califórnia respeitavam as reivindicações
daqueles que haviam se estabelecido antes, ainda que não houvesse
(inicialmente) nenhum governo formal estabelecendo os direitos de
propriedade. E o professor Ed Stringham já fez um
grande trabalho (veja seus artigos
de 2002 e 2003) explicando como que mercados financeiros razoavelmente
sofisticados operaram durante o século XVII, mesmo sem qualquer imposição de
lei estatal.
Também posso contar uma experiência pessoal.
Após ter me formado com um semestre de antecedência na Hillsdale, fiquei
uns sete meses sem muito o que fazer, só esperando começar o meu mestrado na
NYU. Assim, eu e mais dois amigos alugamos um
apartamento em uma área muito decrépita na zona oeste de Chicago. Uma certa manhã, fui até a rua e vi que a
janela da minha caminhonete havia sido quebrada e meu toca CD, roubado. Aí voltei para meu apartamento e chamei a
polícia; eles disseram que iriam
mandar uma viatura. (Tive de alertar um de meus colegas para que ele escondesse
o baseado). Mas adivinhe só? Os tiras nunca apareceram. E atrevo-me a dizer que nenhum detetive
perdeu o sono trabalhando até altas horas, investigando o roubo do meu toca CD.
Portanto, creio que, nessa vizinhança, a polícia não se preocupava muito em
proteger os direitos de propriedade dos residentes. E embora eu não possa provar, estou certo de
que o crime organizado não controlava todas as mercearias da região. Agora, pode
ser que organizações criminosas estivessem envolvidas com bares, mas, de
novo, adivinhe só? É preciso ter uma licença estatal para gerir um bar apto a vender bebidas alcoólicas. E quando se tratava de algo amplamente aberto
para a concorrência, como uma mercearia ou um restaurante, tenho certeza de que
estes eram geridos por empresários legítimos, que não recorriam à violência
para manter possíveis concorrentes afastados.
E eu não creio que a polícia iria se incomodar em proteger esses
comerciantes do assédio de alguma máfia local.
Conclusão
O defensor da anarquia de mercado está fazendo a simples alegação de que a
violação sistemática dos direitos de propriedade não ajuda em nada uma
sociedade. A teoria econômica padrão diz
que os monopólios mantidos à base da violência (ou por sua ameaça) levam a
serviços de baixa qualidade e preços altos.
Essa análise se mantém válida mesmo quando o monopólio se refere aos
serviços judiciais, policiais e militares.
Os libertários geralmente reconhecem que o governo faz um péssimo
trabalho quando tenta educar crianças, manter estradas e gerir hospitais. Por que, então, alguém em sã consciência iria
querer dar a políticos e burocratas a tarefa de nos proteger de ladrões
e assassinos? Afinal, eles são os piores
ladrões e assassinos do mundo!