segunda-feira, 10 0aio 2010
A escravidão existiu por milhares de anos, em todos os tipos de sociedade e
em todas as partes do mundo. Imaginar
como seria a vida social dos homens sem a escravidão era algo que exigia um esforço
extraordinário. Entretanto, de tempos em
tempos, sempre surgiam alguns excêntricos que se opunham a ela, a maioria argumentando
que a escravidão era uma monstruosidade moral e que, portanto, as pessoas
deveriam aboli-la. Tais pessoas
geralmente provocavam diversas reações, que iam desde a galhofa educada até o
escárnio ríspido, chegando até mesmo a agressões violentas.
Quando alguém se dava ao trabalho de fornecer alguns argumentos contra a
abolição, várias ideias eram defendidas.
Eis aqui dez ideias desse tipo que encontrei durante minhas leituras.
1. A escravidão é natural. As pessoas são diferentes, e é natural
esperar que aqueles que são de certa forma superiores - por exemplo, em termos
de inteligência, moralidade, conhecimento, perícia tecnológica ou capacidade de
luta — irão transformar-se em mestres daqueles que são inferiores nesses
quesitos. Abraham Lincoln expressou, em
1858, essa ideia em um de seus famosos debates contra o senador Stephen
Douglas: "Há uma diferença física entre as raças branca e negra, diferença essa
que, acredito, irá para sempre impedir as duas raças de viverem juntas em
termos de igualdade social e política.
E, visto que elas não podem portanto viver juntas, enquanto elas permanecerem
juntas é necessário existir a posição do superior e do inferior, e eu, assim
como qualquer outro homem, sou a favor de que a posição superior seja exercida
pelo homem branco".
2. A escravidão sempre
existiu. Esse motivo exemplifica a
falácia lógica do argumentum ad
antiquitatem (apelo à tradição). Não
obstante, ele sempre persuadiu as pessoas, especialmente aquelas de tendência
conservadora. Mesmo os não-conservadores
podem dar a ele alguma substância lógica baseando-se no fundamento
quase-hayekiano de que, embora não entendamos por que uma instituição social
persiste, sua persistência pode, todavia, estar baseada numa lógica que ainda
não entendemos.
3. Todas as sociedades da terra
utilizam a escravidão. O corolário
não-explícito é que todas as sociedades devem recorrer ao trabalho escravo. A difusão generalizada de uma instituição
parece, a muitas pessoas, constituir uma prova convincente e irrefutável de sua
necessidade. Talvez, como defende uma
das variáveis dessa corrente, toda sociedade utiliza o trabalho escravo porque
certos tipos de trabalho são tão difíceis ou tão degradantes, que nenhuma
pessoa livre irá se dispor a fazê-lo — e, portanto, a menos que haja escravos
para realizar esses trabalhos, eles não serão realizados. Como dizia o ditado do sul dos EUA, alguém
tinha de se sujar de lama, e as pessoas livres não iriam tolerar exercer essa
função.
4. Os escravos não são capazes de
cuidar de si próprios. Essa ideia foi
muito popular entre as pessoas que viviam nos EUA do final do século XVIII e
início do século XIX, entre elas George Washington e Thomas Jefferson, que,
embora considerassem a escravidão algo moralmente repreensível, continuaram
mantendo escravos e deles obtendo serviços pessoais e renda dos produtos que
esses "servos" (como preferiam se referir a eles) eram forçados a
produzir. Seria cruel e desapiedado
libertar pessoas que, uma vez libertadas, iriam, na melhor das hipóteses, infligir
a si próprias um padrão de autodestruição e sofrimento desnecessário.
5. Sem mestres, os escravos irão
morrer em massa. Essa ideia nada mais é
do que a ideia acima levada ao seu extremo.
Mesmo após a escravidão ter sido abolida nos EUA em 1865, muitas pessoas
continuaram expressando essa ideia.
Jornalistas do norte, que viajaram ao sul imediatamente após a Guerra
Civil, relataram que, de fato, os negros estavam em processo de extinção em
decorrência de sua alta taxa de mortalidade, baixa taxa de natalidade, e
miseráveis condições econômicas. É
triste mas é verdade, declararam alguns observadores: as pessoas libertadas
eram realmente muito incompetentes, preguiçosas ou imorais para se comportarem
de modo consistente com a sobrevivência de seu próprio grupo.
6. Onde as pessoas comuns são
livres, elas estão em condições ainda piores que as dos escravos. Esse argumento se tornou muito popular no sul
dos EUA nas décadas anteriores à Guerra de Secessão. Seu principal defensor era o escritor
escravocrata George Fitzhugh, cujos títulos de seus livros falam por si sós: Sociology for the South, or, the Failure of
Free Society (Sociologia para o Sul, ou, o Fracasso da Sociedade Livre, de
1854) e Cannibals All!, or, Slaves
Without Masters (Todos Canibais!, ou, Escravos sem Senhores, de 1857).
Fitzhugh parece ter copiado muitas das ideias do escritor escocês,
reacionário e racista, Thomas Carlyle. A
expressão "escravo do salário" ainda hoje ecoa essa concepção que vigorava
antes da Guerra Civil. Fiel às suas
teorias sociológicas, Fitzhugh queria estender a escravidão nos EUA para toda a
classe operária branca — para o próprio bem dela!
7. Abolir a escravidão iria
ocasionar um grande banho de sangue e outros malefícios. Nos EUA, muitas pessoas assumiam que os
senhores de escravos jamais iriam permitir o término do sistema escravocrata
sem recorrer a uma guerra geral para tentar mantê-lo. Com efeito, quando os onze estados
confederados do sul e a União foram à guerra — ignorando-se aqui que a questão
imediata não era a abolição da escravidão, mas sim a secessão dos onze estados
do sul — um enorme banho de sangue e outras mazelas foram o resultado. Esses trágicos eventos pareceram, na mente de
muitas pessoas, validar os argumentos que elas haviam dado contra a abolição.
(Elas evidentemente ignoram que, com a exceção do Haiti, a escravidão foi
abolida em todo o Ocidente sem que houvesse violência em grande escala).
8. Com a abolição da escravidão,
os ex-escravos irão entrar em frenesi, roubando, estuprando, matando e
provocando o caos generalizado. Para que
haja a preservação da ordem social, portanto, a abolição da escravidão deve ser
sumariamente rejeitada. Os sulistas viviam
apavorados com a possibilidade de insurreições de escravos. Os nortistas de meados século XIX já
consideravam a situação em sua própria região suficientemente intolerável,
culpando o maciço influxo de irlandeses bêbados e brigões nas décadas de 1840 e
1850. Logo, libertar os negros, de quem
os irlandeses geralmente não gostavam, e jogá-los nessa mistura iria
praticamente garantir o caos social.
9. Tentar acabar com a escravidão
é algo ridiculamente impraticável e utópico; somente um sonhador de cabeça
perturbada poderia defender uma proposta tão ridiculamente ilógica e
absurda. Pessoas sérias e sensatas não
podem se dar ao luxo de perder tempo considerando ideias tão irrelevantes e
parvas.
10. Esqueça a abolição. Um plano muito melhor é manter os escravos
suficientemente bem alimentados, vestidos, acomodados e ocasionalmente
entretidos, desviando o foco de suas mentes da exploração de que sofrem e
estimulando-os a se concentrar na boa perspectiva de vida que os aguarda daqui
pra frente. Não se pode esperar que haja
equidade e justiça nessa vida, porém todos nós, inclusive os escravos, podemos
aspirar a uma vida de comodidades e júbilo no Paraíso.
Em um dado momento da história, incontáveis pessoas recorreram com naturalidade
a um ou mais dos argumentos acima expostos para fundamentar sua oposição à
abolição da escravidão. Entretanto,
quando se analisa em retrospecto, esses argumentos nos parecem extremamente
prosaicos — parecem mais racionalizações (ato de se inventar possíveis razões
para uma ação, razões essas que não se baseiam nas razões verdadeiras) do que
argumentações lógicas.
Atualmente, esses argumentos são muito similares àqueles utilizados pelos
oponentes de uma diferente forma de abolicionismo: a proposta de que o governo
como o conhecemos — o domínio monopolista e individualmente não consensual
exercido por um grupo armado que exige obediência e o pagamento de tributos —
seja abolido. Deixo como exercício para o
leitor decidir se os argumentos acima mencionados são mais convincentes em
relação a essa proposta do que eram em relação à sugerida abolição da
escravidão.