No
início desta semana, fomos brindados com um relatório da ONG britânica Oxfam,
afirmando, entre outras coisas, que
62 pessoas do mundo possuem a mesma riqueza que metade da população mundial
— além de outras afirmações sensacionalistas, e já rotineiras, feitas pelo
referido Instituto.
Nosso
amigo Leandro Narloch fez um bom resumo
acerca dos principais mitos e omissões da Oxfam em relação ao referido
relatório.
Com
afirmações como "o 1% mais rico possuirá mais fortuna que todo o resto da população
em 2016", não é difícil imaginar como um cidadão médio reagiria a tal notícia: provavelmente
condenando a chamada desigualdade, sem entender ou diferenciar os diversos
fatores que contribuem para a mesma, ou sequer se perguntar se ela é algo
relevante para qualquer aspecto de sua qualidade de vida.
A
Diretora Executiva da Oxfam International,
Winnie Byanyima, chegou a afirmar que a desigualdade
econômica atrapalha o próprio crescimento econômico. A senhora Byanyima provavelmente
tem saudade das altas taxas de crescimento que a União Soviética registrava
todos os anos...
As
sugestões da ONG são repetitivas já:
- Taxar os ricos (essa até o PT já abraçou; give me more!);
- Investir em sistemas universais e "gratuitos" de
saúde e educação (Mussolini teria orgulho);
- Buscar um objetivo global para combater isso.
Como
isso poderia dar errado? Afinal, Brasil, Venezuela e Argentina
(pré-Macri) foram um retumbante sucesso econômico na mobilidade social dos mais
pobres...
Enquanto
isso, no mundo real, estamos perto de erradicar
a pobreza mundial pela primeira vez na história da humanidade. Walter Williams nos recorda que a pobreza é fácil de ser
explicada; difícil (mas não para um austríaco) é entender as causas da
prosperidade e como o ser humano, ao agir positivamente em busca de seus
próprios objetivos, beneficia todos os outros.
Por
que punir aqueles que conseguiram fazer suas fortunas pelo trabalho de suas próprias
mãos? Como mostra este hilário
infográfico do site pop 9gag (baseado em dados da Bloomberg), nada menos
que 73 das 100 pessoas mais ricas do mundo são "self-made billionaires" — ou
seja, somente 27 dos mais ricos do mundo assim o são porque herdaram uma
fortuna. Os demais trabalharam por conta própria para chegar onde chegaram.
Ainda
mais interessante: 36 deles eram filhos de pais que viviam na pobreza, e 18
sequer tiveram um diploma na Universidade.
Você
realmente acredita que existe uma fórmula certa para ter um "sucesso de renda"?
Para a Oxfam existe. Para todos os planejadores centrais — dos positivistas
aos comunistas, nazistas, socialistas e ambientalistas — existe sempre uma
fórmula única de acordo com a qual a sociedade deve ser desenhada. E o melhor: tal fórmula dará certo, mesmo que
tenha que ser implantada à força. Como alguém consegue ficar sequer em dúvida
ao descobrir que todos os regimes socialistas inevitavelmente têm de ser totalitários?
Entretanto,
ainda que para um analista na tradição da Escola Austríaca as sugestões e as
conclusões da Oxfam pareçam tão economicamente
incoerentes, resolvi conversar com um economista com foco em — preparem-se — econometria.
Troquei
alguns e-mails com Carlos Góes, mestre em Economia Internacional pela
conceituada John Hopkins University,
pesquisador-chefe do Instituto Mercado
Popular, e analista de instituições financeiras internacionais em
Washington, DC. Apesar de tudo, ele me garante ser um fã de Hayek. Vamos ao
bate-papo:
A:
É consenso entre economistas liberais
que o estudo da Oxfam possui diversas falhas e um ar de sensacionalismo. Qual
das falhas do estudo divulgado nesta semana você considera a mais grave?
Carlos
Góes: Independentemente de economistas serem liberais, keynesianos ou
marxistas, clareza metodológica é fundamental para entender o que significam as
respostas que os dados proveem para a gente. E é preciso reconhecer as
limitações dos dados quando essas existem.
Há
dois problemas fundamentais com os dados produzidos pela Credit Suisse que
foram utilizados pela Oxfam.
O primeiro é de ordem técnica. Ao contrário de dados sobre a renda, a grande
maioria dos países não tem dados sobre os estoques de riqueza, uma vez que o
que se taxa normalmente é a renda e não a riqueza. Esse fato limita a confiabilidade
das estatísticas sobre a riqueza.
Segundo o relatório da Credit Suisse, somente 17 países têm
estimativas completas de riqueza do setor privado (conhecidas como
"household balance sheets"). Outros 31 países têm dados parciais,
detalhando a riqueza financeira, mas não a riqueza não-financeira do setor
privado — nos EUA, a riqueza não-financeira (imóveis, maquinários etc.) é de
cerca de 1/3 da riqueza total, o que significa que ignorar a parte não
financeira é ignorar boa parte da realidade.
Para
os outros 150 países do estudo, os economistas da Credit Suisse fizeram
extrapolações — que não são inúteis, mas têm suas limitações, já que não
trazem informações completas.
O
relatório original da Credit Suisse tem vários problemas além do mencionado
acima. Entre eles:
(a)
não inclui riqueza informal (as casas nas favelas e bairros pobres brasileiros,
por exemplo, que muitas vezes valem dezenas de milhares de reais apesar de não
serem formalizados com um título estatal), riqueza esta que o economista
Hernando de Soto estima em cerca de 10 trilhões de dólares;
e
(b) não inclui riqueza implícita — como aquela prevista por sistemas de
seguridade social dos países ricos, que se fossem administrados privadamente
seriam parte de poupança dos cidadãos.
O
próprio relatório da Credit Suisse diz que o estudo sobre a riqueza global está
"em sua infância". Na melhor das hipóteses, essas estimativas
são pouco confiáveis e devem ser tomadas com bastante cuidado.
O
segundo problema é de ordem conceitual. Eles utilizam o conceito de riqueza "líquida"
(ou seja: patrimônio menos dívidas). Segundo essa metodologia, se você tirar um real do bolso e der para seu sobrinho de
dez anos, ele vai ter uma riqueza maior do que "2 bilhões de pessoas somadas".
Sim, seu sobrinho instantaneamente passa a ser um magnata com mais riqueza que
bilhões de pessoas juntas.
Como isso é possível? Porque a metodologia considera a
riqueza "líquida" (ou seja: patrimônio menos dívidas) das pessoas. E 2 bilhões
de pessoas, tendo dívida, têm riqueza negativa.
Alguém que se formou em Harvard,
vive num apartamento de cobertura em Nova York e ganha 100 mil dólares por ano
mas tem 250 mil dólares em dívidas estudantis é mais pobre do que um camponês
indiano que tem uma bicicleta, vive com um dólar por dia e não tem dívida.
Não importa se o cara de Harvard gasta centenas de dólares
tomando McCallahan's 18 anos todas as vezes em que sai pra balada. Pra Oxfam, ele
é mais pobre que o camponês indiano.
Ainda segundo essa metodologia, quando você compra um
jatinho você se torna imediatamente mais pobre. Como? Você acaba de assumir uma
dívida de 25 milhões de dólares (incluindo juros) e adquiriu um patrimônio de
valor de mercado de uns 20 milhões de dólares. Logo, você está 5 milhões de
dólares mais pobre.
Para a Oxfam, quem viaja de jatinho usando financiamento é
mais pobre do que quem viaja de ônibus pagando à vista."
Isso faz sentido pra definir quem é pobre e quem é
rico?
A:
Você acredita que o estado causa
desigualdade de renda?
O
estado pode aumentar ou reduzir a desigualdade, a depender do desenho da
política pública. No Brasil, a estrutura tributária, por ser excessivamente
prevalente em impostos sobre o consumo (que incidem desproporcionalmente sobre
os mais pobres, já que estes em geral consomem uma parte maior de sua renda),
contribui para aumentar a desigualdade. Além disso, diversas políticas
específicas beneficiam diretamente os mais ricos.
O
BNDES concede empréstimos a juros subsidiados e, em seu portfólio, a imensa maioria de seus beneficiários são aquelas empresas com
faturamento maior que 300 milhões de reais por ano. Além disso, políticas
como universidades estatais financiadas por impostos funcionam como transferência de renda para os mais ricos e
ajudam a perpetuar as desigualdades. Historicamente, não é muito difícil
ver como o governo em diversas instâncias transferiu dinheiro de pobres para
ricos. É só pensar no caso mais explícito desse comportamento, quando o
governo, em plena Grande Depressão, comprou café dos grandes agricultores e
queimou os grãos manter o preço do café alto nos mercados internacionais. Neste
caso (como nos dois anteriores), o governo estava tirando dinheiro do
contribuinte pobre e dando ele para a elite. Por outro lado, políticas
focalizadas que beneficiam diretamente os mais pobres (como o Bolsa Família),
podem ajudar a reduzir a desigualdade.
É
interessante que pessoas com diferentes ideologias concordariam com a noção de
que o governo não deveria transferir renda de pobres para ricos. Por isso, é
possível alcançar um consenso político que ajude a reduzir as desigualdades.
Para tanto, é importante que a sejam cortados subsídios de cima para baixo
(começando por aqueles que transferem dinheiro de pobres para ricos) e seja
desburocratizada a economia de baixo para cima (porque, em geral os mais ricos,
armados com exércitos de advogados e contadores, têm mais capacidade para
contornar as regulações que dificultam o empreendedorismo do que o Manuel da
Padaria e a Dona Maria, que têm um ateliê de costura).
A: A
desigualdade de renda causada pelo processo de mercado é algo ruim? Isso afeta
a questão de incentivos em uma economia? Alguns teóricos, por exemplo, alegam
que a grande falha do socialismo seria a questão dos incentivos.
CG:
A primeira coisa a se entender é que nem todas as desigualdades são iguais. Às
vezes, quando o ponto de partida é muito ruim, a desigualdade é simplesmente
fruto da melhoria de vida de algumas pessoas. Angus Deaton, que ganhou o Nobel
de Economia ano passado, traz um exemplo interessante em seu
livro mais recente: imagine que, dentre 100 judeus em um campo de
concentração, dez conseguem fugir. Isso causou uma desigualdade, já que agora
alguns estão em liberdade e outros não. Mas isso não seria uma situação
inerentemente pior à situação de plena igualdade em que todos estavam no campo
de concentração? Talvez essa desigualdade inicial dê esperança para os que lá
ficaram e faça com que eles fujam.
Por
outro lado, talvez os guardas punam os que ficaram para desestimular fugas
futuras. De todo modo, não há nada óbvio em relação à desigualdade. Ela pode
ser boa ou ruim: sempre depende.
Desigualdade
é como colesterol: há uma boa e outra ruim. A boa é aquela que deriva dos
talentos, esforços e inventividade das pessoas e gera bons incentivos. Quando
alguém cria valor para os outros ela deve ser recompensada por isso — porque
isso gera dinamismo econômico, inovação e menos pobreza (pense no arquétipo do
Steve Jobs). Se ela não for recompensada, ela não vai ter incentivo pra
continuar inovando.
A
ruim é aquela de uma sociedade estamental — de comando e controle —, onde as
pessoas não enriquecem por causa de sua inventividade ou pelo valor que geram
para à sociedade, mas pelos privilégios que têm junto aos poderosos (pense no
arquétipo de Eike Batista).
Temos
de corrigir as desigualdades injustas que existem no mundo — e elas existem em
demasia. Mas para isso precisamos de análise séria. E não retóricas travestidas
de números.
A: Um
estudo sensacionalista como esse pode gerar uma grande repercussão política.
Mises sempre defendeu que as ideias são a chave para a evolução de uma
sociedade. Como explicar para o público de forma mais simples que esse estudo
não reflete a realidade da sociedade mundial?
CG:
O primeiro passo é reconhecer que, pra imensa maioria das pessoas, desigualdade
naturalmente incomoda. Por exemplo, há evidências de experimentos em psicologia
social que mostram que crianças preferem ficar sem doces a ver a outra criança na sala
arbitrariamente ganhar uma quantidade desproporcionalmente maior de doces.
Por isso, se as pessoas acreditarem que a elas está sendo negada a oportunidade
de conseguir vencer na vida por motivos injustos (por exemplo, por causa de
elites que compram o apoio de políticos com doações eleitorais ou que proíbem
que negros tenham acesso a boas escolas de brancos), elas vão se sentir
revoltadas. Isso é natural.
O
ponto mais importante, portanto, é mostrar que a melhor maneira para evitar que
elites políticas e econômicas cooperem para manter seus privilégios é retirando
o poder político das mãos delas — e descentralizando as decisões nas mãos da
sociedade por meio do sistema de preços. Sempre que políticos tiverem muito
poder, os ricos terão incentivos para comprá-los. E, na medida em que tivermos
uma economia descentralizada e dinâmica, as eventuais desigualdades de
resultados provavelmente não serão percebidas como injustas pela maioria da
população — pois seria a tal desigualdade "boa" mencionada
anteriormente.
Durante
toda a década de 1990 a desigualdade aumentou nos EUA, mas pouco se falava
sobre isso. Por quê? Porque a maioria das pessoas via suas vidas melhorarem:
elas tinham maior renda e consumiam mais. Elas não se sentiam injustiçadas pelo
processo político e pela falta de oportunidades econômicas.
Hoje,
como uma boa parte das pessoas viu sua renda estagnar e percebe que todos os
ganhos têm sido apropriados por uma parcela pequena da população, elas se
revoltam.
O
debate, portanto, não reside necessariamente em negar a existência de
desigualdades (em diversos países ela de fato está aumentando), mas em como
caminhar na direção de um modelo que evite desigualdades injustas.
A:
Vivemos o melhor momento da humanidade
em qualidade de vida. Porém, ONGs como a Oxfam, entre outras, tendem a projetar
uma catástrofe, agitando por uma mudança no sistema. Você acredita que o
sistema econômico geral internacional precisa mudar? E em caso positivo, para
qual direção?
CG:
Certamente vivemos numa era sensacional. As perspectivas é que testemunhemos o
fim da pobreza absoluta no decurso das nossas vidas. Além disso, a mortalidade
infantil está caindo, a expectativa de vida está aumentando e a escolaridade
média de meninos e meninas está subindo — dentre muitos outros indicadores
sociais — na imensa maioria dos países. Bilhões de pessoas saíram da pobreza
e, como o aumento na renda delas foi maior do que nos países ricos, a
desigualdade total no mundo tem caído.
Muitas
dessas mudanças se intensificaram nos últimos 40 anos, quando partes antes
remotas do mundo — como diversas partes da Índia e da China — foram
integradas à economia global. A mudança necessária é uma expansão dessa
integração para áreas que ainda estão no gérmen desse processo — como a África
Subsaariana.
Existem
diversos problemas recentes de exacerbação das desigualdades nos países
desenvolvidos — e é por isso que estudos como os da Oxfam têm tanta
repercussão. Mas, numa perspectiva global, não há dúvidas: o mundo está se
tornando mais rico, mais justo e mais igual.
(fim
da entrevista)
Ao
saber que não eram só os austríacos que consideravam o relatório um disparate,
fui dormir tranquilo. Afinal de contas, amanhã posso enriquecer uma criança
doando a ela apenar um dólar.
A
esquerda conseguiu seu objetivo: nunca ser um salvador da humanidade foi tão
fácil.